Carlos Cruz
Com reservas comprovadas e prováveis de 861,4 milhões de toneladas de minério de ferro, conforme a Vale informou à Comissão de Valores Mobiliários dos Estados Unidos na quinta-feira (19), Itabira dispõe de pouco mais de nove anos para diversificar a sua economia enquanto ainda dispõe desse recurso mineral (leia mais aqui).
As minas de Itabira começaram a ser exploradas em 1942 – e não em 1957 como erroneamente informa o relatório anual do Formulário 20-F (Form20-F) – pela então estatal Companhia Vale do Rio Doce (CVRD). A empresa foi criada pelo governo federal com aporte de capital de 200 mil contos de reis.
Nasceu como parte da contribuição brasileira ao esforço de guerra dos aliados para derrotar os nazifascistas, o eixo do mal, na Segunda Guerra Mundial (1939-45).
Desde então, nos últimos 76 anos, a cidade natal de Carlos Drummond de Andrade exportou mais de 1,5 bilhão de toneladas de hematita e itabiritos.
Contribuiu assim, decididamente, para a vitória dos aliados – e também para a recuperação econômica do Japão, resultante de um acordo entre o Brasil e aquele país.
Hoje, com investimentos da ordem de R$ 7 bilhões, a maior parte constituída de empréstimo estatal, por meio do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), a mineradora assegurou a sua sustentabilidade no presente e futuro no complexo de Itabira. Para isso, construiu a usina Conceição II, e readequou as antigas usinas Conceição e Cauê para beneficiar as reservas de itabirito duro.
Com o investimento, inaugurou nesta década o que chamou de a “terceira onda tecnológica do minério de ferro em Itabira”. Com o novo ciclo, exauridas as minas itabiranas a empresa pretende continuar operando as suas usinas para beneficiar itabiritos vindos de outros municípios. Assim, irá manter os seus ativos produtivos por muitos anos além do horizonte de exaustão das minas Itabiranas, com fim previsto para 2028.
Pobre cidade rica
E para o município, o que representa essa modernização? É certo que a continuidade da operação das plantas industriais da Vale na cidade é ótimo negócio para a multinacional do minério, mas nem tanto para Itabira.
Isso pelo fato de o processo de concentração do minério de outras localidades consumir o mesmo volume de água classe especial atualmente empregado no beneficiamento de mais de 41 milhões de toneladas anuais provenientes das minas locais.
Com os produtos de outras localidades virão também rejeitos que precisam ser dispostos de forma segura, o que pode agravar ainda mais situação ambiental e de segurança das barragens, no caso de métodos alternativos de disposição desse material não forem empregados.
Com o beneficiamento de minérios de outras localidades serão gerados pouco mais de algumas centenas de empregos diretos, contra os 4 mil postos de trabalho atualmente existentes no quadro de empregados da mineradora.
Passados todos esses anos, a população de Itabira continua pobre, embora o PIB local seja considerado alto, de R$ 32,1 mil por habitante/ano, contra a média nacional de R$ 29,3 mil. Isso se deve aos salários relativamente altos, se comparados também com a média nacional, dos empregados da mineradora.
Mas para o restante da população, excluída uma pequena elite que também nem é tão rica, fica muito pouco. A população itabirana é muito pobre – basta observar as condições de moradias nos bairros populares.
Dívida impagável
A Vale tem uma dívida histórica com Itabira, que a isentou de impostos desde a sua criação em 1942 até 1966, quando só então foi instituído o já extinto Imposto Único sobre Minerais (IUM). A empresa só começou a pagar royalties pela exploração mineral após a promulgação da Constituição Federal de 1988.
A mineradora não reconhece essa dívida histórica. Daí que o município decidiu dar prosseguimento às ações civis públicas e indenizatórias instauradas nas décadas de 1980/90 para que tenham uma decisão final.
A Procuradoria Jurídica da Prefeitura cobra também o cumprimento de acordos judiciais e extrajudiciais que ficaram só no papel, a maioria sem resultados práticos.
E deve entrar com outras ações por não cumprimento das condicionantes da Licença de Operação Corretiva do Distrito Ferrífero de Itabira, aprovadas em 2000 pela Câmara de Mineração, do Conselho Estadual de Política Ambiental (Copam).
São várias ações – e algumas se encontram registradas no relatório Form-20. Outras foram reabertas neste ano – e devem figurar no relatório de 2020.
Dentre elas estão as ações civis públicas instauradas pelo Ministério Público na Comarca de Itabira, pioneiramente no país, em 1986, com base na Lei federal 7.347/85, que reformulou o papel do Ministério Público ao passar a cuidar do meio ambiente, do patrimônio histórico, artístico e arquitetônico.
Com base em reportagens do jornal O Cometa, o objetivo dessas ações foi cobrar medidas reparadoras pela degradação paisagística da Serra do Esmeril (Minas do Meio), poluição do ar e supressão de mata nativa para plantio de pinus e eucalipto pela empresa Florestas Rio Doce, subsidiária da então CVRD (leia mais aqui).
Essas ações estão sendo movimentadas novamente a pedido da Procuradoria Jurídica da Prefeitura de Itabira, tendo sido aceito o pedido para a realização de perícias judiciais, quando se espera comprovar os danos, que persistem.
Registro
Já no relatório Form-20 do ano passado, publicado neste ano, a empresa informa aos acionistas a existência de duas ações movidas pelo município de Itabira. A primeira ação foi ajuizada em agosto de 1996, pelo então prefeito Olímpio Guerra (1993/96). A ação pede que a empresa indenize Itabira em cerca de US$ 1,5 bilhão pelos danos econômicos, sociais e ambientais causados pelas suas operações.
“O município de Itabira alega que nossas operações de minério de ferro provocaram danos ambientais e sociais, e reivindica indenização pela suposta degradação ambiental da área de uma de nossas minas, assim como o imediato restabelecimento do complexo ecológico afetado, além da implantação de programas ambientais compensatórios na região”, informa a empresa em seu relatório anual.
Segundo os dados contábeis da mineradora, a indenização solicitada, ajustada a partir da data da reivindicação, totaliza aproximadamente R$ 6,379 bilhões.
“Foi emitido um relatório de um perito favorável à Vale, mas o tribunal aceitou o pedido (formulado) pelo município de uma comprovação adicional do perito”, diz o relatório.
De acordo com a Vale, “ambas as partes concordaram em suspender a ação até a apresentação de um laudo pericial e reunir-se novamente para discutir um possível acordo após a apresentação de tal laudo pericial”, complementa.
Em outra ação, ajuizada em setembro de 1996, o município de Itabira reivindica “o reembolso pelas despesas que incorreu em razão de serviços públicos prestados como consequência de nossas atividades de mineração”. Devidamente ajustado, o pedido de indenização é de aproximadamente R$ 6,7 bilhões.
A empresa relativiza essas ações, lembrando que elas estavam suspensas para negociação de acordo, mas que teve o seu prosseguimento retomado, a pedido da Prefeitura, para que siga o seu curso normal. Isso pelo fato de as partes não terem chegado a um acordo. Segue assim com a fase de produção de provas. “Acreditamos que esses processos são sem mérito e continuaremos a contestá-los vigorosamente.”
Impostos e royalties
Além dessas ações por danos ambientais, sociais e econômicos, a mineradora responde a inúmeros processos administrativos e judiciais relacionados ao pagamento da Compensação Financeira pela Exploração Mineral (Cfem), os chamados royalties do minério. E também de outros impostos, como o IPTU e as perdas decorrentes da Lei Kandir, que isenta as exportações brasileiras de pagamento do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS).
“Os processos têm origem em diversas autuações promovidas pelo DNPM (atualmente, ANM)”, informa a empresa, alegando que tiveram origem em decorrência de “diferentes interpretações do método da agência para estimar vendas, o prazo de prescrição, o devido processo legal, o pagamento de royalties sobre a venda de pelotas e os encargos da Cfem sobre as receitas geradas por nossas subsidiárias no exterior”. O valor total reivindicado nas avaliações pendentes é de aproximadamente R$ 7,6 bilhões, incluindo juros e multas até 31 de dezembro de 2018.
A empresa, confiante na justiça brasileira, informa ainda aos acionistas que todas essas ações e cobranças foram contestadas, por meio das vias disponíveis, com impugnações em tribunais administrativos e judiciais. “Já foram recebidas decisões favoráveis e desfavoráveis, e não podemos prever quanto tempo será necessário até as decisões transitarem em julgado.”
Segundo defende a empresa, as avaliações da agência cobriram inicialmente um período de até 20 anos antes de suas emissões. A alegação da defesa foi que o prazo de prescrição aplicável para as reivindicações da Cfem seria de 20 anos.
“Contestamos todas as cobranças argumentando que o prazo decadencial aplicável seria de cinco anos”. Ou seja, a empresa se utiliza do instituto da prescrição, que beneficia o mau pagador, ao invés de entrar no mérito e contestar essas cobranças.
“Em dezembro de 2015, a Advocacia Geral da União (AGU) emitiu um parecer jurídico concluindo que as cobranças de Cfem estão sujeitas ao prazo decadencial de 10 anos”, registra o relatório Form-20.
Para tranquilizar os investidores, a Vale sustenta ainda que essa conclusão está de acordo com as decisões do Superior Tribunal de Justiça (STJ). “Esperamos que a ANM e os tribunais excluam os encargos que estão prescritos sob este parecer legal.”
Lei Kandir é só mais uma isenção de impostos que a Vale historicamente usufrui
A Vale informa aos acionistas que está envolvida em vários processos administrativos e judiciais de cobranças adicionais de ICMS pelas autoridades fiscais de diferentes estados brasileiros. Isso mesmo sendo a mineradora isenta pela lei Kandir, promulgada em 13 de setembro de 1996 pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso, de pagamento do imposto sobre o minério exportado, que constitui o maior volume de sua produção nacional.
A cobrança dessa dívida tem por base a dedução de créditos que seriam devidos pela mineradora e que não eram dedutíveis. Ou seja, para Estados e municípios, a mineradora não pagou o que era devido do imposto, mesmo usufruindo da isenção do grosso da produção de minério de ferro exportado.
Em Minas Gerais, a empresa é cobrada também pelo governo por não ter pagado o ICMS relativo ao transporte de minério de ferro. A empresa contesta a cobrança, alegando que o imposto não se aplica a essa atividade pelo fato de a atividade ter sido exercida pela própria mineradora – e não por terceiros.
“O tribunal decidiu definitivamente em nosso favor com relação aos autos de infração abrangendo os anos de 2009 e 2010, em um valor total de R$ 632 milhões. Com relação às atividades em 2011, 2012 e 2013, o valor em causa é de R$ 959 milhões (incluído nas perdas possíveis mencionadas acima)”, afirma a empresa, que aguarda, também nesse caso, uma decisão favorável.
Derrota incomparável
Com o fim iminente da extração de minério em Itabira, a empresa terá que fazer o descomissionamento de suas minas. Para isso, deve apresentar também um balanço socioeconômico e ambiental da atividade.
Será um momento propício para se fazer um balanço da dívida histórica que é ambiental, econômica, social, política e moral. Afinal, não fica bem para a empresa, já tão profundamente desgastada com o rompimento das barragens de Mariana e Brumadinho, deixar mais esse rastro de destruição e abandono, que vem de longos 76 anos, na cidade que forneceu a riqueza para se tornar uma das maiores mineradoras do mundo.
Se a dívida histórica não for quitada, seja pela via judicial ou amigável, ficará mais esse débito a denegrir a sua imagem. A mineração acaba em Itabira, mas a Vale continuará abrindo novas minas em outras localidades, no país e pelo mundo afora.
Itabira, se nada for feito para reverter o quadro, será um laboratório vivo de como a mineração não traz progresso e bem-estar social sustentável. Quando muito, essa “prosperidade” só dura enquanto as minas forem produtivas.
Que município, Estado ou país vai querer uma atividade que não é sustentável sob o ponto de vista social e ambiental? Não cumprir acordos, e deixar Itabira renegada à própria sorte de cidade minerada e exaurida, definitivamente não é bom para a imagem global da Vale.
A empresa insiste, erroneamente, na tese de que a mineração é uma atividade sustentável. Pode ser para ela, mas para os municípios minerados historicamente não tem sido, como aqui se comprova. Cabe à Vale e às autoridades municipais, do Estado e do país reverterem essa triste sina.
2 Comentários
Meu pai sempre dizia que:
-se essa mineradora disser, não ouça;
-se escrever, não lei; e
-se a diretoria assinar o que escreveu, corra ao Cartório para reconhecer a assinatura porque depois irão dizer que não foram eles que assinaram…
Pingback: Prefeitura quer receber indenização da Vale pela antiga mina Camarinha, parque do Itabiruçu, danos paisagísticos e poluição do ar em Itabira - Vila de Utopia