Igor Guerra*
Das latarias, o ônibus é a que eu mais admiro. Esse gigante que perambula pelas cidades, recolhendo gente pelas ruas. E a cada parada se renova com ansiedades, ganâncias, alegrias e tristezas que vão passando pela roleta, enquanto outras já sacudidas saem, saltam para o meio-fio de seus caminhos ou se encostam no próximo ponto.
Foram se acomodando. A infância sentou nos bancos mais altos, disputando pela janela. A beleza se encostou nos ferros de apoio. A maturidade, encolheu-se num cantinho reservado. A bela e um feio, sentaram-se lado a lado. Foi enchendo, aos poucos, e uma parada que fervilhava terminou de nos enlatar.
De tão pesado, o busão chiava ao subir o morro, como um jumento que lamenta o peso da lenha. Lá dentro, em comunhão urbana, estavam professores, estudantes e os seus fones de ouvido.
Operários vindo do serviço pesado, vendedor ambulante, turistas. Gente que vira roleta diariamente e alguns perdidos, que por acaso se apertam por um dia ou outro. Uma comunhão de diferenças, cheiros e olhares pela trajetória pontilhada.
Uma moça do pré-vestibular queria ver o celular, sem espaço para manobrar os braços, tentou e não conseguiu. Esbarrou em um cara que estava em pé com seu terno. Suas roupas diziam “doutor” e o nome do escritório de advocacia, que era um sobrenome de família tradicional. O homem e seu terno fizeram careta com a gravata.
Uma madame falava com os gringos sobre os EUA e quando pausava o inglês, olhava para os lados com semblante igual ao do advogado. Uma imagem espelhada.
Num balançar de carroça, o vendedor ambulante passou – “vai um Halls aí”?
E fora de seu habitat, a madame perguntou – “what”?
Os operários estavam cansados e felizes, era sexta-feira. Enquanto engenhavam a noite, gozavam com os aventureiros que chacoalhavam dentro do ônibus. Iam se esquecendo do Edifício Social a levantar, pelo menos até o busão de segunda-feira.
Pois o busão é o jumento do povo urbano. É um desenvolvimentista das cidades, que recolhe e distribui gente para o cumprimento das funções sociais. Trotando pelas ruas, conhece cada esquina, carrega rabiscos no verso de seus encostos e não se esquece do percurso.
O desejo norte-americano desceu do ônibus, sonhando com transportes climatizados, e sem aquela gente. “Halls, eu lá compro Halls”, torceu o nariz.
O homem da lei, acostumado em defender as propriedades privadas, saiu em seguida, secando o rosto e conferindo se não tinha pegado cecê. Tinha que parecer intacto com seu terno, que é um gringo e não entende o calor tropical.
Os operários desceram no ponto da Tapera, onde havia um boteco, um gole de cachaça e o mundo a rodar. Bem-criado, o boteco.
Seguimos para o Ribeirão.
A menina conseguiu se sentar, alcançou o celular, conectou-se aos distantes, afastando-se de tudo que estava ao seu lado. Já não estava ansiosa e podia ficar anos sacudindo ali.
O vendedor ambulante deu o último grito e puxou a cordinha, que por sinal, é o meu ponto. E depois dessa ladainha vou saltar para o meio-fio.
Vou-me excomungar do coletivo urbano. Vou sair desse ponto de encontro, que aproxima os distantes, os diferentes, mas irmãos do cotidiano, da ligação entre as pessoas e as coisas que é a cidade.
O busão é o jumento do povo urbano. O busão, é nosso irmão.
É o meu ponto, dá licença, posso passar?
Obrigado.
*Igor Guerra é cronista e estuda agronomia nas horas de folga