Foi um passeio carregado de recordações e detalhes pitorescos pela história de Itabira dos anos 1960/70 que uma pequena plateia, formada em sua maioria por parentes e amigos, teve o privilégio de usufruir com a escritora itabirana Sheila Paiva de Andrade, palestrante no primeiro dia do Festival Drummond, na 16ª Semana Drummondiana, instituído para celebrar o privilégio de aqui ter vindo ao mundo, há 115 anos, o filho mais ilustre da cidade, o poeta Carlos Drummond de Andrade, nascido em 31 de outubro de 1902.
Além de fazer palestra, Sheila lançou também em Itabira o seu novo livro Palavra por Palavra. Uma ponte entre a PAIXÃO e o AMOR, o segundo de sua autoria publicado pelo selo da Editora Quarup, que edita também este site.
Bem-humorada, ela contou que ao vir agora para o festival, ela e o marido Eduardo Andrade se perderam em Itabira, cidade onde nasceu e que conheceu muito bem – aqui vivendo toda a sua juventude.
Ao sair do hotel para percorrer a cidade, teve dificuldade de encontrar o caminho de volta. Sabia que o hotel ficava perto da antiga estação ferroviária, mas nem mesmo as pessoas na rua, a quem ela recorreu para se informar, souberam dizer onde ficava.
“A estação era uma referência para mim. Hoje, ficou escondida. A cidade cresceu não ao redor dos morros, que eram as nossas referências geográficas, mas em cima dos morros”, observou. “Em Itabira eu não mais enxergo morros, só prédios.”
Outras perdas que a escritora considera incomparável, entre tantas outras perdas, foram as únicas, exclusivamente itabiranas, calçadas de hematita de aluvião, pedras roladas com as águas vindas do Cauê descendo pelo córrego da Penha, arredondadas pela ação da natureza, e que ornamentaram por muitos anos as ruas do centro histórico.
A escritora lamentou que tenham sido arrancadas por sucessivos prefeitos em nome do progresso, cedendo lugar ao asfalto quente, que não deixa a água da chuva percolar e reabastecer o lençol freático – e que torna a cidade comum como tantas outras cidadezinhas do interior.
“Tínhamos essa coisa mais linda aqui em Itabira. Não sei qual foi o prefeito que tirou a calçada pé de moleque de hematita compacta, brilhante, que só havia aqui”, lastimou. Atualmente, as únicas ruas que contam com calçadas remanescentes desses belos seixos rolados de minério são as Princesa Isabel e Major Paulo – ambas necessitando de urgente restauração. “Uma cidade deste tamanho bem que podia ter trânsito longe do centro histórico.”
Mas, recorda a escritora, no tempo em que ainda havia calçadas de minério, o footing à tarde no paredão, as idas ao cinema e aos bailes no clube Atlético Itabirano constituíam um momento ímpar para as “minas” da época exercitarem as pernas e as panturrilhas.
“Nós, que éramos jovens, caminhávamos no meio da calçada com salto 7,5/8 centímetros e ninguém caia. As moças de Itabira tinham fama de não ter celulite, de tanta ginástica que fazíamos”, contou, achando muita graça.
Bailes da vida
Ainda jovem e solteiro, o pai de Sheila, Luiz Germano Bomtempo de Paiva, mudou-se para Itabira, em 1942, para trabalhar na recém-criada Companhia Vale do Rio Doce. Assim como ele, os rapazes de fora que aqui chegavam, sofreram com o xenofobismo que era grande entre os “nativistas”, ao ponto de impedirem que frequentassem bailes no Atlético, clube da “elite” local. “Ficavam aqueles rapazes do lado de fora loucos para entrar e namorar. Mas não podiam”, conta a escritora o que ouvia de seu pai.
Paiva, então, juntamente com outros colegas, fundaram o Valério – e passaram a promover animados bailes e horas dançantes, inicialmente, na própria sede da empresa, depois na sedinha do Valério, na rua Mestre Emílio, bairro Pará. “O meu pai era um jazzista, tocava piano de ouvido. E como não havia bons músicos em Itabira, começou a trazer de fora e dava um jeito de empregá-los na Vale.”
E trazia também, para apurar os ouvidos e o gosto musical, as novidades do jazz norte-americano, discos de Duke Ellington, Dizzy Gillespie. E assim foi surgindo uma geração de músicos mais refinados, formando bandas para tocar nos bailes. “Edgar, violão, Mário Rosa, baterista, Pivete, no bongô e tantos outros músicos que agora não me lembro os nomes, tocavam nos ‘conjuntos’ que animavam os nossos memoráveis bailes”, relembrou.
“Como em Itabira não havia um bom pianista, pai trouxe de Belo Horizonte virtuosos instrumentistas como José Guimarães, que depois tocou com a turma do Clube de Esquina, assim como Elvis Vilela, que aqui tocou em muitos bailes para depois virar pianista de Gal Costa, Caetano Veloso”, citou a escritora, ao recordar como eram refinados os bailes no Valerinho.
Entusiasmada, Sheila lembrou de uma crooner (cantora de baile) que veio várias vezes a Itabira, ainda mocinha, filha de uma costureira de Paraopeba (MG), chamada Clara Nunes. “Meu pai me tirava do quarto para ela dormir. Clara Nunes vinha com a recomendação de sua mãe para que não dormisse em hotel. Ela cantava à noite e acordava na hora do almoço para saborear o macarrão com carne assada que a minha mãe, Eunice, servia e ela adorava.”
Outro cantor famoso contumaz participante dos bailes que Paiva promovia no Valério foi Cauby Peixoto. “Vieram também Elizeth Cardoso e outros grandes nomes da música popular que fizeram de Itabira um centro cultural e musical muito importante”, acrescentou a escritora.
Ela contou ainda que, juntamente com os amigos Délio, Claudia Cardoso, Élcio Alvarenga, os três já falecidos, e mais Gilson e Ilton Couto formaram o primeiro grupo vocal bossa-novista de Itabira. O conjunto se chamava Obras Primos. “Éramos chamados para tocar por todo canto de Minas e era muito divertido.”
Tempo de faculdade
Uma revolução cultural ocorreu também com a instalação da Faculdade de Ciências e Letras de Itabira, uma parceria que o então bispo Marcos Noronha conseguiu com a Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG), que aqui instalou, em 1968, no auge da ditadura militar, o seu primeiro campus fora de Belo Horizonte.
“A faculdade foi uma das melhores coisas que aconteceu em Itabira naquela época. Marcos Noronha trouxe para dar aula professores renomados da capital que estavam sendo perseguidos como subversivos e até torturados. Vieram dar aula para as primeiras turmas da faculdade e eu tive o privilégio de participar como aluna do curso de Letras.”
Café com Drummond
Foi nessa época que Sheila, aos 19 anos, e a amiga Maria de Lourdes Araújo, conhecida professora de Português, resolveram visitar Drummond para perguntar ao poeta como era mesmo a história da fotografia na parede.
“Consegui o telefone dele com a sobrinha Julieta Müller e com a cara e coragem fomos para o Rio. Liguei para o apartamento de Drummond e, para nossa surpresa, ele atendeu o telefone. E nos convidou para um café.”
Como invariavelmente ocorria nas visitas de itabiranos ao poeta, Drummond inverteu o jogo e ao invés de ser entrevistado passou a querer saber de tudo o que se passava em sua cidade natal. “Eu acabei ensinando a ele como se prepara um café com leite com açúcar queimado, uma coisa inusitada.”
Quanto à fotografia na parede, Drummond se esquivou. Contou a história de uma estudante que por muito conhecer o escritor Paul Valéry, escreveu uma tese de mestrado sobre ele. E acabou sendo reprovada justamente pela intimidade que mantinha com o filósofo, escritor e poeta francês, de quem era vizinha.
O poeta afirmou ainda que quando um autor escreve um poema e o publica, esse não mais lhe pertence. Passa a ser de quem o está lendo.“De repente o minério de Itabira, o ferro nas calçadas, a fotografia na parede que você enxerga, são mais bonitos que aquilo que eu escrevi”, disse Drummond às visitas, esquivando-se de explicar o significado dos versos do célebre poema Confidência do Itabirano, ainda hoje incompreendido por muitos em sua terra natal.
Poeta maior que Pessoa
Anos mais tarde, em missão pela Unesco em Maputo, capital de Moçambique, Sheila Paiva se encontrou com um jovem ainda pouco conhecido, de nome António Emílio Leite Couto – e que só depois de iniciada a conversa ela descobriu se tratar de um célebre escritor e biólogo moçambicano, conhecido pelo pseudônimo de Mia Couto.
“Na conversa, Mia Couto me disse ter dois autores brasileiros dos quais ele não abre mão: ‘Guimarães Rosa, que orienta a minha literatura fantástica, e a poesia de Carlos Drummond de Andrade, que considero maior que Fernando Pessoa’, ouvi dele, e fui logo dizendo que eu era sua conterrânea. Aí ele me deu um forte abraço e guardei viva na memória a sua declaração que me deixou mais orgulhosa ainda de ser itabirana.”
3 Comentários
Bacana poder relembrar dos tempos que corríamos nas ruas calçadas de pedras e todos com muita atenção para não levar um trupicão.
Ninguém caia.
Só agora leio No tempo em que as “minas” de Itabira não tinham celulite, um título ótimo, e que beleza de conversa coma Sheila.
Meu pai trabalhou na Companhia na época do Paiva. Ele instalou aquela iluminação no Valério do Pará, que mudava de cor e sempre lembrava com muito carinho do Paiva. Que delícia de reportagem!