Hoje é 4 de Outubro, Dia Mundial dos Animais (Itália, 1931). Bom motivo pra Vila de Utopia publicar uma reportagem A cada dez minutos desaparece uma espécie, de Maria Julieta Drummond de Andrade, autora do feminino Gatos e Pombos, Ed. Guanabara, 1986. É um textão, mas vale a pena ler até o fim.
Trata-se de entrevista que a escritora e jornalista fez com Ibsen de Gusmão Câmara (1924-2014), então presidente da FBCN, fundada em 1958, que “foi por muitos anos a mais importante e influente ONG conservacionista do Brasil, desempenhou um papel decisivo na criação de 11 parques nacionais”.
A entrevista foi publicada em agosto de 1984, menos de um ano de seu retorno de Buenos Aires para o Rio, e aqui viveu até 5 de agosto de 1987.
Em 1985 Maria Julieta estava presente e influente (Conselho Federal de Cultura) no processo de redemocratização do país. Agora, 35 anos depois, vivenciamos uma inflexão covarde no processo democrático a partir do Golpe 16 que depôs a presidente eleita Dilma Vana Rousseff. Aquela mesma, que ao sair do Planalto, avisou: “Não ficará pedra sobre pedra”.
A entrevista comprova a descida ladeira abaixo de um país verde-esmeralda, amarelo-ouro, preto-ferro, povo-cruel, de natureza cruel: As Bandeiras! Mariana! Brumadinho! E daí? Já passou! Ou, o nosso jeitinho de garantidores da barbárie já deu um jeito de lembrar de esquecer?
A reportagem é peça central na composição de um jornal, é o meio por onde se toma conhecimento de um certo assunto coberto por documentos probatórios, dados e a versão dos fatos na voz das partes envolvidas.
Atiça a verve de cronistas extraordinários como Rubem Braga, que cronistamente deu uma rasteira genial, memorável no parente e cronista Antonio Crispim. A prosa e o verso são espaços de liberdade artística, pode-se escrever sobre os acontecimentos como bem se entende…
Na voz do filho – Pedro Drummond Etcheverry, um carioca los hermanos – em depoimento gravado para o vídeo Maria Julieta Drummond de Andrade: 90 anos, pelo Instituto Moreira Salles/Rio, a cronista se explica ante a lacração dos filhos:
– Ela tinha a hora dela de escrever e não se podia interferir muito nesse momento. Tem aquela história da nossa gata Greta, que teve dois filhotes que nasceram mortos, e ela escreveu uma crônica falando que a gata tinha comido os bichinhos.
Ficamos tão indignados com uma versão falsa do que tinha acontecido. A coitada da Greta estava sendo difamada pelo jornal, e falamos isso: “mamãe, olha, isso aí não é verdade.” Ela deu um chega pra lá dizendo: “Olha eu sou uma escritora profissional e escrevo o que me der na telha, vocês não tem nada com isso”.
(MCS)
A cada dez minutos desaparece uma espécie
Maria Julieta Drummond de Andrade
(Belo Horizonte, 4 de março de 1928 – Rio de Janeiro, 5 de agosto de 1987)
Amo plantas e bichos com emoção e ignorância, pois – mulher urbana – desconheço quase tudo a respeito de seus costumes e preferências.
Por isso admiro com entusiasmo as pessoas e instituições que se dedicam a compreender e defender esses seres belos e generosos, que possibilitam a vida do homem sobre a terra e são por este maltratados e perseguidos.
Foi portanto com alegre curiosidade que procurei o vice-almirante reformado Ibsen de Gusmão Câmara, há três anos presidente da Fundação Brasileira para a Conservação da Natureza, fundada em 1958, com o intuito de …
“recomendar e realizar uma ação nacional, no sentido de preservar os nossos recursos naturais renováveis e, em especial, a vegetação, a flora, as populações de animais, a fauna, as águas, o solo, as paisagens e os monumentos naturais, pleiteando também a reserva de áreas de valor científico, histórico, estético ou de importância econômico-financeira no bem-estar futuro dos povos”.
A FBCN acha-se instalada em casa própria, numa rua tranquila de Botafogo; no mínimo terreno à frente, junto à nespereira, frequentada pelos passarinhos das redondezas, um jovem pé de pau-Brasil.
Esportivo, discreto, aparentando menos de que os 60 anos que tem, o presidente me recebe em seu gabinete, de camisa listrada e calça azul; expressa-se com fluência, precisão e calma.
Nas paredes, posteres representando folhagens, bichos nativos; sobre a mesa baixa, conservados em frasco, um ovo e o corpo escuro de uma tartaruga-de-couro recém-nascida; ossos de um filhote de baleia-franca, num canto da varandinha.
As baleias, aliás, interessam especialmente o vice-almirante e também, talvez por serem tão grandes e mansas, a opinião pública brasileira. Forçada por esta, a Sudepe baixou em 1978 uma portaria – depois tornada sem efeito –, proibindo a partir de 81, a caça daqueles animais em nossa costa.
O tema volta, no momento, afligir os amigos dos simpáticos mamíferos: há dois anos, a Comissão Internacional da Baleia (que regulamenta essa caça, estabelecendo quotas, por áreas e espécies) votou e aprovou a proibição da pesca, de 1986 em diante, tendo em vista que, das 10 espécies exploradas, resta hoje no mundo apenas uma, com população razoável.
Tal decisão não era, entretanto, obrigatória, bastando que qualquer país-membro, em desacordo, comunicasse à Comissão, no lapso de 90 dias, não estar disposto a cumpri-la. Foi o que fizeram a União Soviética, o Japão e a Noruega sem que punição alguma lhes fosse infringida.
Já o Brasil acatou aparentemente a resolução, mas esgotado o prazo, quer voltar atrás, o que significa que deixará de cumprir um pacto internacional, expondo-se a uma “pesada campanha por parte das conservacionistas do mundo inteiro”.
Explica-me Ibsen de Gusmão Câmara que essa atitude ambígua se deve à pressão que está exercendo sobre o governo a pequena companhia baleeira da Paraíba, única existente entre nós e que, dizendo-se nacional, é controlada pelos japoneses.
A companhia destaca os problemas socioeconômicos que adviriam da suspensão da pesca e que, na verdade, não são de vulto; durante 5 meses do ano, 200 empregados ficariam sem emprego, com baixíssimo nível de remuneração.
Por outro lado, deixando de exportar baleias para o Japão, o Brasil perderia apenas 3 milhões de dólares anuais, quantia irrelevante dentro do total de nossas exportações, que supera longe os 20 bilhões.
Apesar de que da baleia, como do boi, se aproveita quase tudo, concordo com o presidente da FBCN em que os motivos alegados não justificam o extermínio de animais tão nobre, que afiançam o tesouro universal.
Agradando entrevistado e repórter, o tema se prolonga. Fico sabendo que, gravados em ritmo acelerado, os sons emitidos pelas baleias lembram o canto de passarinhos.
Só que não se trata de canto estereotipado, pois muda de ano para ano, em algumas espécies, como se as baleias aprendessem canções e, de tanto repeti-las, se cansassem delas, substituindo-as por outras.
Até populações da mesma espécie costumam entoar cantigas diferentes. Sua estrutura social é complexa e talvez mais estrita que a humana; sendo algumas baleias monógamas, se um animal é sacrificado, dois elementos desaparecem do processo reprodutivo, já que o sobrevivente se nega a associar-se de novo.
Outra predileção de Ibsen de Gusmão Câmara: os macacos. Atualmente, a FBCN se acha empenhada em salvar o mono-carvoeiro (a maior espécie das Américas com um peso que oscila entre 15 a 20 quilos), no limite da extinção, com apenas 500 indivíduos.
Reunindo recursos enviados pela World Wild Life Fund (cerca de 200 milhões de cruzeiros) e obtidos em campanhas nacionais (apenas 5 milhões), pretende adquirir uma área, no município de Caratinga, onde vivem uns 50 animais.
A iniciativa do Projeto Mono partiu de um primatólogo norte-americano, interessado em preservar esses macacos raros, de rabo comprido e cômico, mas, para levá-lo a cabo, a Fundação precisaria obter fundos que completem um total de 800 milhões de cruzeiros.
Surpreende-me a diferença numérica entre as doações fora e patrícias. Vindo de fora, esse dinheiro não implicaria submissão à vontade estrangeira?
– Esses fundos – esclarece o vice-almirante – provêm de gente sem influência. Didi, muito digno e pausado, passava em direção à sua escola de datilografia. Estacou, olhou-me admirado, sacudiu a cabeça e saiu resmungando.
– E apelida-se escritor! – ouvi-o dizer, fazendo gesto escandalizado.
– E por que é que a FBCN não recebe verbas oficiais?
– Porque elas nunca nos foram oferecidas – responde meu interlocutor, com um sorriso leve – e fazemos questão de manter independência de opinião.
Sou informada de que a Fundação que não visa a fins lucrativos, conta também com as quotas anuais dos associados (uma ORTN como contribuição mínima para pessoas físicas e 5, para as jurídicas) e com fundos que lhe chegam através de convênios com o governo; agora, por exemplo, está encarregada da manutenção do Jardim Botânico.
– Como vê a política ecológica brasileira?
Com o mesmo sorriso, o vice-almirante afirma:
– Eu diria que ela não existe. A preservação de ecossistemas não parece sensibilizar os nossos dirigentes, salvo em órgãos específicos, como IBDF e a Secretaria do Meio Ambiente. Ao contrário do que ocorre em outros países – inclusive na Índia, que enfrenta dificuldades sociais bem mais graves do que as nossas – não vejo na alta cúpula ninguém com esse tipo de preocupação.
– A que atribui esse descaso? – Insisto.
– Trata-se de um problema cultural, que não é só nosso, mas de todas as nações latinas, que não se dedicam suficientemente à natureza. De uns anos para cá isso se agravou, porque o Brasil passou a encarar o desenvolvimento apenas sob o aspecto econômico, aumento do Produto Interno Bruto, sem atentar no desenvolvimento cultural, que abrange também nosso patrimônio histórico e genético.
Continuando, o presidente da FBCN assegura que muita gente acha válido destruir uma floresta inteira para plantar nela capinzal e criar bois, sem considerar que, além do seu valor intrínseco, a floresta é uma enorme riqueza potencial.
Bem pesquisada, renderia bastante mais que o gado, mesmo do ponto de vista da política desenvolvimentista. Falta-nos conhecimento sobre a utilização da maioria dos nossos recursos naturais.
Cita o exemplo da plantinha “inconspícua e corriqueira” (cujo nome popular lhe escapa) na qual estudos recentes identificaram 80 alcaloides, sendo que um deles, empregado no combate a certas formas de câncer, fez o nível de mortandade baixar de 75 para 25%. Que fortuna encontramos então na Floresta Amazônica, da qual só 1% das plantas foram estudadas, estando os 99% restantes sendo arrasados, antes de conhecidos?
Assusta-me ouvir que hoje se calcula a destruição de uma espécie a cada 10 minutos, num ritmo 500 vezes superior ao que se deu em qualquer outro período da história da terra. Teme-se que até o final deste século, um quinto das 5 ou 10 milhões de espécies vivas tenham desaparecido, basicamente pela ação do homem.
Voltando ao que já se referira, o vice-almirante atribui parte dessa devastação, no Brasil, a pressões econômicas indiretas de grupos poderosos. Refere-se ao caso dos agrotóxicos, que o governo Federal resolveu regulamentar, estabelecendo uma legislação que deverá substituir as estaduais:
– Não digo que seja apenas obra das multinacionais, mas é quase certo que, interessados em vender este ou aquele agrotóxico, eles estejam metidos nisso. Há também pressões internas e até quem sabe, boas intenções dos que procuram aumentar a produção… fornecendo-nos produtos envenenados – conclui ele, com ácida ironia.
Ibsen de Gusmão Câmara vê com apreensão e angústia o futuro do nosso país, onde a Mata Atlântica está reduzida a menos de 5% do que já foi.
Felizmente ainda há uma esperança: as pequenas matas que restam são “verdadeiras arcas de Noé”, ecossistemas que resistiram à destruição ao redor, em que se acham concentradas – como na futura reserva de momos em Caratinga – todas as espécies que formaram a grande mata.
Não é menos pessimista em relação ao futuro do planeta, pois, extintas as espécies, não haverá tecnologia que as faça reaparecer; serão necessários milhões de anos para que a natureza as recomponha, talvez através de novas espécies.
E diante do meu espanto, o vice-almirante fala-me dos golfinhos, que passaram a ocupar o nicho ecológico deixado vazio pela extinção, em épocas pré-históricas, de repteis que apresentavam forma e comportamento semelhante do delfim.
Num país como o nosso, em que os poucos museus são antiquados, os Jardim Zoológicos, “abaixo da crítica, programa para fim de piquenique “, e em que a História Natural, a Zoologia e a Botânica foram, nos currículos escolares comuns, incorporadas a “uma tal de biologia”, seria indispensável uma ação reeducadora, que moldasse os cidadãos desde a infância. Curiosamente, são as crianças e os jovens que melhor acompanham a tarefa da FBCN.
O vice-almirante conta a história do garotinho que, por conta própria, fez uma coleta entre amigos e entregou à Fundação um cofre cheio de moedas, destinadas ao Projeto Mono.
Comove-o também a presença constante de moços lotando o auditório, quando ele pronuncia conferências sobre a flora e a fauna em extinção.
Estatísticas realizadas há 10 anos indicaram 86 espécies de animais brasileiros ameaçados, entre os quais destaco alguns, de nomes e aspectos envolventes: o lindo mico-leão-dourado, a preguiça-de-coleira, o tamanduá-bandeira, o pato-mergulhador, a ararinha-azul, o papagaio-de-peito-roxo, o sabiá-castanha, o jacaré-de-papo-amarelo.
O desconhecimento nesse setor é tão grande que a FBCN está iniciando um exaustivo trabalho de levantamento das espécies, contando para isso com a ajuda financeira de organizações internacionais.
– Que lhe parece, como tentativa de solução, a formação de um partido ecológico?
Ibsen Gusmão Câmara acha a ideia, que já tem sido ventilada, inconveniente:
– Seria tão absurdo como fazer um partido só de saúde ou de educação, e correríamos o risco de que, por motivos políticos, os objetivos desse partido fossem combatidos. Na minha opinião, todos os partidos deveriam ocupar-se da ecologia, a fim de preservarmos essa nave espacial em que vivemos.
O encantamento pela natureza foi, a princípio, um hobby para Ibsen de Gusmão Câmara, que desde menino se sentiu atraído por ela. Associou-se à FBCN há 15 anos, mas só depois que deixou a Marinha passou a presidi-la.
– Qual o seu hobby hoje?
Ele sorri meio encabulado:
– Continuo sendo o mesmo. Casado, com duas filhas e um neto de 3 anos, dedica ao cargo tempo integral: de manhã e muitas vezes à noite, cuida da correspondência e da preparação das palestras, que pronuncia aqui e no estrangeiro, na casa que construiu na Barra da Tijuca: um “ecossisteminha” em que faz questão de conservar as árvores primitivas em detrimento de outras, frutíferas, que preferiu não plantar. Passa as tardes na sede da Fundação. Seu maior desejo: que o sentimento de amor à natureza cresça no Brasil:
– Só chegaremos a um resultado positivo no dia em que cada brasileiro se convencer de que, mesmo isoladamente, poderá fazer alguma coisa para salvar um patrimônio que não é nosso, mas da humanidade.
[Jornal do Dia, Cuiabá (MT), 24/8/1984, da Hemeroteca da BN-Rio]
1 comentário
Tita querida, que maravilha de entrevista, não conhecia este lado da Maria Julieta, pensava que ela era cronista. E é triste ler aquilo que já preocupava e que agora é um arraso total. beijos queridinha