Lenin Novaes*
“O menino cresceu entre a ronda e a cana/Correndo nos becos que nem ratazana/Entre a punga e o afano, entre a carta e a ficha/Subindo em pedreira que nem lagartixa/Borel, Juramento, Urubu, Catacumba/Nas rodas de samba, no eró da macumba/Matriz, Querosene, Salgueiro, Turano, Mangueira, São Carlos, menino mandando/Ídolo de poeira, marafo e farelo/Um Deus de bermuda, pé-de-chinelo/Imperador dos morros, reizinho nagô/O corpo fechado por babalaô/Baixou oxolufã com as espadas de prata/Com sua coroa de escuro e de vício/Baixou cão-xangô com o machado de asa/Com seu fogo brabo nas mãos de Corisco/Ogunhê se plantou pelas encruzilhadas/Com todos seus ferros/Com lança e enxada/E Oxossi com seu arco e flecha e seus galos/E suas abelhas na beira da mata/E Oxum trouxe pedra e água da cachoeira/Em seu coração de espinhos dourados/Iemanjá, o alumínio, as sereias do mar e um batalhão de mil afogados/Iansã trouxe as almas e os vendavais/Adagas e ventos, trovões e punhais/Oxum-maré largou suas cobras no chão/Soltou sua trança, quebrou o arco-íris/Omulu trouxe o chumbo e o chocalho de guizos/Lançando a doença pra seus inimigos/E Nana-buruquê trouxe a chuva e a vassoura/Pra terra dos corpos, pro sangue dos mortos/Exus na capa da noite soltaram a gargalhada/E avisaram a cilada pros orixás/Exus, orixás, menino, lutaram como puderam/Mas era muita matraca pra pouco berro/E lá no Horto maldito, no chão do Pendura-saia, Zambi menino Lumumba tomba da raia/Mandando bala pra baixo contra as falanges do mal/Arcanjos velhos, coveiros do carnaval/Irmãos, irmãs, irmãozinhosPor que me abandonaram/Por que nos abandonamos em cada cruz/Irmãos, irmãs, irmãozinhos, nem tudo está consumado/A minha morte é só uma: Ganga, Lumumba, Lorca, Jesus/Grampearam o menino do corpo fechado/E barbarizaram com mais de cem tiros/Treze anos de vida sem misericórdia/E a misericórdia no último tiro/Morreu como um cachorro e gritou feito um porco/Depois de pular igual a macaco/Vou jogar nesses três que nem ele morreu/Num jogo cercado pelos sete lados”.
“Tiro de misericórdia”, de João Bôsco e Aldir Blanc, não contém a estrutura do som tradicional do samba, considerando o conceito harmônico do gênero musical que é a maior manifestação cultural popular do Brasil. A música pode até não ser considerada samba tradicional, mas, no vasto e qualificado repertório de João Bôsco, tem vários sambas, com som virtuoso que é a sua marca. Interessante é ouvir as leituras diferenciadas daquela música na voz de Elza Soares, Chico Batera, Sandra de Sá, Thelmo Lins e Titane.
E, com referência àquela música, prezados leitores e leitoras da Vila de Utopia, um estimado amigo pediu-me que abrisse a matéria sobre o nosso personagem com a letra de “Tiro de misericórdia”. E o atendi, pois, por via da dúvida, como diz o ditado: “Aos amigos tudo e, aos inimigos, amém”.
O argumento dele, que me convenceu, foi o seguinte:
– Sabe, Lenin, a música denuncia atrocidades contra crianças e adolescentes, praticadas, principalmente, pela Polícia Militar em todas as capitais e principais cidades do país. Em 2016, o Brasil registrou 61.619 mortes violentas, o maior número de homicídios da história, de acordo com dados divulgados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em outubro passado. A estimativa é de que sete pessoas foram assassinadas por hora ano passado, com aumento de 3,8% em relação a 2015. A taxa de homicídios para cada 100 mil habitantes ficou em 29,9 no país.
Para o diretor do FBSP, Renato Sérgio de Lima, os números registrados no país são “no mínimo, obscenos. A violência se espraiou para todos os estados. Não é exclusividade só de um, apesar de haver uma vítima preferencial”. O quantitativo de assassinatos é comparado ao número de pessoas mortas pela explosão da bomba nuclear que aniquilou Nagasaki, no Japão, em 1945, na Segunda Guerra Mundial. O Estado de Sergipe registrou a maior taxa de mortes violentas por 100 mil habitantes: 64, seguido do Rio Grande do Norte, com 56,9, e Alagoas, com 55,9. E as capitais com maiores taxas de assassinatos por 100 mil habitantes foram Aracaju, com 66,7; Belém, com 64; e Porto Alegre, com 64,1.
Na boca do povo
Muito além do som diferenciado e personalizado, João Bôsco tem várias de suas canções na boca do povo, como é o caso de “O bêbado e a equilibrista”. A cantora Elis Regina, que a popularizou, segundo contou Henfil à época, “ela ficou chorando o tempo todo. Talvez tenha antevisto a importância que teria essa música, coisa que não percebi”. Pouco tempo depois, a canção se tornaria o maior sucesso do disco Essa mulher, de 1979, e ganharia o apelido de “Hino da Anistia”. Também é singular a música “Mestre-sala dos mares”, que resgatou a história do marinheiro João Cândido, líder da Revolta da Chibata, em 1910. As músicas ganharam projeção nacional e internacional com Elis Regina, que gravou um total de 28 músicas da dupla João Bôsco e Aldir Blanc, entre as quais “Dois prá lá, dois prá cá”, “Bala com bala”, “O cavaleiro e os moinhos”, “Cabaré”, “O caçador de esmeraldas”, “Violeta de Belfort Roxo”, “Caça à raposa” e “Agnus Sei”, entre outras.
Quem não cantou ainda “O bêbado e a equilibrista”, com certeza, cantará, pois a música irá cruzar os tempos da vida brasileira.
“Caía a tarde feito um viaduto/E um bêbado trajando luto/Me lembrou Carlitos/A lua tal qual a dona do bordel/Pedia a cada estrela fria/Um brilho de aluguel/E nuvens lá no mata-borrão do céu/Chupavam manchas torturadas/Que sufoco!/Louco!/O bêbado com chapéu-coco/Fazia irreverências mil/Pra noite do Brasil/Meu Brasil!/Que sonha com a volta do irmão do Henfil/Com tanta gente que partiu/Num rabo de foguete/Chora/A nossa Pátria mãe gentil/Choram Marias e Clarisses/No solo do Brasil/Mas sei que uma dor assim pungente/Não há de ser inutilmente/A esperança/Dança na corda bamba de sombrinha/E em cada passo dessa linha/Pode se machucar/Azar!/A esperança equilibrista/Sabe que o show de todo artista/Tem que continuar”.
Em episódio recente, no qual a Polícia Federal deu nome a uma operação utilizando a expressão “Esperança Equilibrista”, o artista se manifestou através do Facebook da seguinte maneira:
“Recebi com indignação a notícia de que a Polícia Federal conduziu coercitivamente o reitor da Universidade Federal de Minas Gerais, Jaime Ramirez, entre outros professores dessa universidade. A ação faz parte da investigação da construção do Memorial da Anistia. Como vem se tornando regra no Brasil, além da coerção desnecessária (ao que consta, não houve pedido prévio, cuja desobediência justificasse a medida), consta ainda que os acusados e seus advogados foram impedidos de ter acesso ao próprio processo, e alguns deles nem sequer sabiam se eram levados como testemunha ou suspeitos. O conjunto dessas medidas fere os princípios elementares do devido processo legal. É uma violência à cidadania.
Isso seria motivo suficiente para minha indignação. Mas a operação da PF me toca de modo mais direto, pois foi batizada de Esperança Equilibrista, em alusão à canção que Aldir Blanc e eu fizemos em honra a todos os que lutaram contra a ditadura brasileira. Essa canção foi e permanece sendo, na memória coletiva do país, um hino à liberdade e à luta pela retomada do processo democrático. Não autorizo, politicamente, o uso dessa canção por quem trai seu desejo fundamental.
Resta ainda um ponto. Há indícios que me levam a ver nessas medidas violentas um ato de ataque à universidade pública. Isso, num momento em que a Universidade Estadual do Rio de Janeiro, estado onde moro, definha por conta de crimes cometidos por gestores públicos, e o ensino superior gratuito sofre ataques de grandes instituições (alinhadas a uma visão mais plutocrata do que democrática). Fica aqui portanto, também a minha defesa veemente da universidade pública, espaço fundamental para a promoção de igualdades na sociedade brasileira. É essa a esperança equilibrista que tem que continuar.”
Mineiro de Ponte Nova
João Bôsco de Freitas Mucci é de Ponte Nova, cidade mineira, onde nasceu em 13 de julho de 1946, e já aos quatro anos cantava na paróquia. Aos 12 anos ganhou violão e criou o grupo de rock and roll X_Gare. Em Ouro Preto concluiu o curso científico e ingressou na escola técnica de mineralogia, em 1962. Anos depois se formou em engenheiro civil, na UFOP. Em 1967 conheceu Vinicius de Moraes e foi honrado com sua parceria e, em 1970, tornou-se parceiro de Aldir Blanc, com quem compôs mais de 100 músicas. Em 1972 gravou “Agnus sei” no disco de bolso do jornal O Pasquim, tendo do outro lado “Águas de março”, com Tom Jobim. Ainda em 1972 conheceu Elis Regina, que gravou “Bala com bala”. No ano seguinte se mudou para o Rio de Janeiro e gravou o primeiro disco. E, a partir daí, a sua carreira foi alcançando o pico da pirâmide da música popular brasileira.
No ano de 1974, Elis Regina gravou, no disco Elis, três novas músicas da dupla: “O mestre-sala dos mares”, “Dois prá lá e dois prá cá” e “Caça à raposa”, que daria título ao segundo disco de João Bosco. O samba-enredo “O mestre-sala dos mares” foi feito em homenagem ao marinheiro João Cândido, líder da Revolta da Chibata, em 1910, mais conhecido como “Almirante Negro”. Mas, devido à censura da época da ditadura militar, aparece na letra da música como “navegante negro”. Em 1975 gravou o segundo disco, Caça à Raposa, com letras de Aldir Blanc, incluindo sucessos como “Dois prá lá e dois prá cá”, “De frente pro crime”, “kid Cavaquinho”, “O mestre-sala dos mares”. Ainda naquele ano, ele e outros artistas foram expulsos da Sociedade Independente de Compositores e Autores Musicais (Sicam) por lutar em defesa legal de direitos autorais.
Em 1976 lançou o disco Galos de Briga, com letras de Aldir Blanc. Entre outros sucessos, “O ronco da cuíca”, “Transversal do tempo”, que deu título ao disco Show de Elis Regina. No final de 1976, João Bosco e Aldir Blanc recusaram o prêmio “Golfinho de Ouro”, em favor do compositor Cartola. Mas, a dupla recebeu o troféu de “Compositores do Ano”, prêmio concedido pela Associação Brasileira dos Produtores de Disco. No ano seguinte gravou Tiro de Misericórdia, com destaque para a faixa título. Em 1979 lançou Linha de Passe, em parceria com Aldir Blanc e o saudoso poeta e compositor Paulo Emílio. Destaca-se “O bêbado e a equilibrista”, escolhida, entre as 14 canções brasileiras, o samba do século, com resultado divulgado pela ABL – Associação Brasileira de Letras.
Os outros discos de João Bôsco são: Bandalhismo, Essa é sua vida, Comissão de frente, Gagabirô, Cabeça de nego, Ai, ai, ai de mim, Bôsco, Zona de fronteira, Na onda que balança, Dá licença meu senhor, As mil e uma aldeias, Benguelé, Na esquina, Malabaristas do sinal vermelho e Obrigado, gente.
No livro de bolso, o início
Prezados leitores e leitoras da Vila de Utopia, volto ao início do relato da carreira de João Bôsco para reproduzir comentário do compositor Sérgio Ricardo, sobre a música “Agnus sei”, no disco de bolso do projeto do jornal O Pasquim, do qual ele foi supervisor, junto com o cartunista Ziraldo. Disse ele:
“Ouvi João Bôsco pela primeira vez em minha casa quando estava escolhendo artista novo, desconhecido, que viria gravar o outro lado do compacto simples. Achava que seria meio impossível encontrar alguém que tivesse fôlego para encarar o artista consagrado do outro lado do disco, Tom Jobim, com “Águas de Março”, temendo que viesse a jogar o desconhecido numa ‘gelada’. Foi um susto. Qualquer uma das músicas que ele apresentou naquele dia poderia entrar no disco. Depois de muita conversa resolvemos ficar com “Agnus sei”, considerando sua parceria com outro craque, Aldir Blanc. Depois do disco pronto, Tom Jobim pediu para ouvir o outro lado. Após longa pausa, ele me olhou e disse: ‘Ô Sergio, você está querendo me derrubar?’. E aí cobriu o João de elogios. Rimos muito, ainda sem saber que aquele seria um disco histórico, pois lançava “Águas de Março”, considerada, posteriormente, como a música do século e a descoberta de um tal de João Bosco”.
E Sérgio Ricardo conclui:
“Não vou me ater à nossa convivência cercada de ótimos momentos, pois seria assunto para um livro. Quero fazer uma análise do artista. E digo, simplesmente, que se trata de um fenômeno. Sua melodia, seu ritmo, sua harmonia e seu censo de arranjo ultrapassam os níveis aceitáveis pelos mestres. Seu violão é eletrizante e suas levadas antológicas, por descreverem o ritmo brasileiro ‘nunca dantes navegados’, comprovando a diversidade de nossa rítmica de maneira rica e surpreendente. Sua voz alinhava todo esse universo sonoro com modesta intervenção, dando chance para que os versos ecoem com a mensagem pretendida. Na forma final, ao juntar todos estes valores num palco, é a explosão de um verdadeiro gênio musical da raça. É o Brasil se mostrando forte, ancorado em suas verdadeiras origens, ostensiva e orgulhosamente assumido. Ao ouvi-lo, dá gosto de ser brasileiro”.
Portanto, relembrem a letra de “Agnus sei”, preferencialmente, ao som de João Bôsco, no disco João Bôsco, de 1973. E, de quebra, mergulhe de cabeça no repertório dele, pois “vale a pena, quando a alma não é pequena”.
“Faces sob o sol, os olhos na cruz/Os heróis do bem prosseguem na brisa da manhã/Vão levar ao reino dos minaretes/A paz na ponta dos aríetes/A conversão para os infiéis/Para trás ficou a marca da cruz/Na fumaça negra vinda na brisa da manhã/Ah! como é difícil tornar-se herói/Só quem tentou sabe como dói/Vencer Satã só com orações/E-anda pacatárandá que Deus tudo vê/Ê-anda pacatárandá que Deus tudo vê/E-anda, ê-ora ê-mandá, ê-matá responderei não/Dominus, domínio, juros além/Todos esses anos agnus sei que sou também/Mas, ovelha negra, me desgarrei/O meu pastor não sabe que eu sei da arma oculta na sua mão/Meu profano amor eu prefiro assim/A nudez sem véus diante da santa inquisição/Ah, o tribunal não recordará/ dos fugitivos de Shangri-lah/O tempo vence toda ilusão”.
Novo disco
O novo disco de João Bôsco tem o título de Mano que Zuera, lançado após oito anos sem músicas inéditas. Ele diz que “é reflexo de uma ação em família”. A alma do disco, claro, em toda sua essência, é ‘joãobosquiana’, mas a presença de seu filho está lá, em completa evidência ou nos pequenos detalhes. E João Bôsco se enche de orgulho ao falar da participação do filho, o escritor, compositor e filósofo Francisco Bosco. Ele é antigo parceiro do pai. Após 20 anos, essa parceria entre pai e filho se mostra ainda mais consolidada: além da concepção do novo disco, assinada em dupla, das 11 faixas, entre inéditas e algumas belas releituras, cinco são de João e Francisco Bosco. Como “Onde estiver”, que foi escolhida, não por acaso. João apresentou ao filho uma música que ele achava que contava uma história, ao estilo de Bob Dylan, que fugia de seu universo habitual, ligado às canções sincopadas, africanas ou sambas.
Pediu para Francisco colocar letra. E, para surpresa dele, Francisco devolveu a música com a história da relação entre pai e filho.
Confiram o repertório das músicas do novo disco: “Fim”, João Bôsco e Francisco Bôsco; “Duro na queda”, João Bôsco e Aldir Blanc; “Mano que zuera”, João Bôsco e Francisco Bôsco; “João do Pulo”, João Bôsco e Aldir Blanc; “Clube da esquina nº 2”,Milton Nascimento, Lô Borges e Márcio Borges; “Ultra leve”, João Bôsco e Arnaldo Antunes, participação especial Júlia Bôsco; “Onde estiver”, João Bôsco e Francisco Bôsco; “Sinhá”, João Bôsco e Chico Buarque; “Pé de vento”, João Bôsco e Roque Ferreira; “Coisa nº 2”, Moacir Santos; “Nenhum futuro”, João Bôsco e Francisco Bôsco; “Quantos rios”, João Bôsco e Francisco Bôsco.
2 Comentários
grande músico, salve salve. Ótima reportagem !!!!
João Bosco canta como um sarraceno, lembra muito os cantores do flamenco andaluz e também dos fados lisboeta/alfacinha.
Em suas letras sempre carrega um pouco da nossa história.