Antônio Crispim*
A cidade sentiu, anteontem, o primeiro arrepio de frio. Ontem sentiu o segundo. Hoje é possível que não experimente o terceiro (em matéria de temperatura, tudo é possível e até provável), mas de qualquer maneira aí fica esta nota registrando a chegada oficial do inverno de 1930. Doce inverno! Ele veio dar a Belo Horizonte uma fisionomia que só os velhos e verdadeiros amigos da cidade sabem dizer como lhe fica bem. Porque Belo Horizonte, com todo esse verde, com todo esse azul que enche as suas ruas e vai até a indiscreção de penetrar nas suas casas, dá a muita gente a impressão de um paraíso monotonamente primaveril. É verde demais. Azul demais. Assim, só em verso, e o verso não é a substância de que se faz o nosso dia-a-dia terreno. Por isso, acaba enjoando como uma salada de frutas depois de um bombom de chocolate (ou outra salada de frutas).
Pois bem. Belo Horizonte ganha no inverno manhoso e delicioso que costuma ter, uns tons de cinza, veludo e paina que põem uma nota inimitável de melancolia inteligente na sua beleza um pouco literária. Não há como o frio para fazer inteligentes e amáveis as criaturas e as cidades.
O frio já entrou, dizem as vovós cautelosas e meigas que vieram de Ouro Preto e enchem de poesia as tardes tranquilas do bairro dos Funcionários. Já entrou o frio, constatam os senhores graves, que têm dinheiro nos bancos e usam grossos sobretudos importados da Inglaterra e outros climas de lã. Chegou o frio! Gritam as meninas espevitadas que vivem entre um blues de vitrola e um talkie do Avenida e reclamam agasalhos caríssimos de seus respectivos papais. Mas como tudo isso é gostoso e como nos faz querer bem ao frio, esse doce frio mineiro, que reúne no mesmo pensamento as mais diversas pessoas e nos consola de todos os crimes, desastres e falências que há por aí…
Traço diferencial do inverno de 1930: a boina. Todas as meninas estão andando de boina caída na cabeça, e estão cada vez mais irresistíveis. Há de todas as cores (afinal o inverno não é lá tão cinzento) e mesmo de várias cores cada uma, e todas interessantíssimas, como tudo que é enfeite ou invenção do bicho-mulher, criado para virar o juízo do bicho-homem, o mais ridículo e o menos feliz dos bichos…
E viva o frio.
*Antônio Crispim é pseudônimo de Carlos Drummond de Andrade. Crônica originalmente publicada na década de 1930 no suplemento “Minas Gerais”, do qual ele foi redator. E republicada na coletânea Crônicas (1930-1934), reunidas pela Secretaria de Estado da Cultura, em 1987.
2 Comentários
Que maravilhhosidadeeee! Amei. Que delicadeza.
que bacana !