Carlos Drummond de Andrade
Papai, me compra a Biblioteca Internacional de Obras Célebres.
São só 24 volumes encadernados
Em percalina verde.
Meu filho, é livro demais para uma criança.
Compra assim mesmo, pai, eu cresço logo.
Quando crescer eu compro. Agora não.
Papai me compra agora. É em percalina verde,
Só 24 volumes. Compra, compra, compra.
Fica quieto, menino, eu vou comprar.
Rio de Janeiro? Aqui é o coronel.
Me mande urgente sua Biblioteca bem acondicionada, não quero defeito.
Se vier com um arranhão recuso, já sabe:
Quero devolução de meu dinheiro.
Está bem, Coronel, ordens são ordens.
Segue a Biblioteca pelo trem-de-ferro,
fino caixote de alumínio e pinho.
Termina o ramal, o burro de carga
vai levando tamanho universo.
Chega cheirando a papel novo, mata
de dinheiros toda verde.
Sou o mais rico menino destas redondezas.
(Orgulho, não; inveja de mim mesmo)
Ninguém mais aqui possui coleção
das Obras Célebres. Tenho de ler tudo.
Antes de ler, que bom passar a mão no som da percalina, esse cristal de fluida transparência: verde, verde.
Amanhã começo a ler. Agora não.
Agora quero ver figuras. Todas.
Templo de Tebas. Osíris, Medusa,
Apolo nu, Vênus nua… Nossa Senhora, tem disso nos livros?
Depressa, as letras. Careço ler tudo.
A mãe se queixa: Não dorme este menino.
O irmão reclama: apaga a luz, cretino!
Espermacete cai na cama, queima a perna, o sono.
Olha que eu tomo e rasgo essa Biblioteca antes que pegue fogo na casa.
Vai dormir, mesmo, antes que eu perca a paciência e te dê uma sova.
Dorme, filhinho meu, tão doido, tão fraquinho.
Mas leio, leio. Em filosofias
tropeço e caio, cavalgo de novo
meu verde livro, em cavalarias
me perco, medievo; em contos, poemas me vejo viver.
Como te devoro, verde pastagem.
Ou antes carruagem
de fugir de mim e me trazer de volta à casa a qualquer hora num fechar de páginas?
Tudo que sei é ela que me ensina.
O que saberei, o que não saberei nunca, está na Biblioteca em verde murmúrio de flauta-percalina eternamente.
[Nova Reunião: 23 livros de poesia]
Carlos Drummond de Andrade (Itabira do Mato Dentro, 31 de outubro de 1902 – Rio de Janeiro, 17 de agosto de 1987)
Biblioteca Internacional de Obras Célebres
Biblioteca Internacional de Obras Célebres. Coleção com 24 volumes da literatura universal contendo fábulas, teatro, romance, ensaio, poesia.
A organização da grandiosa edição, que deixou maluquinho o menino Carlito, envolveu escritores do Rio, São Paulo, Lisboa, Paris e Londres, edição de 1923.
A edição brasileira foi prefaciada pelo escritor maranhense Oscar D’Alva, pseudônimo de Antonio dos Reis Carvalho (1874-1946).
A coleção de percalina verde está à venda em sebos por R$1.200,00 + R$223,74 de frete e pesa 199.99gr. (MCS)
3 Comentários
Há sempre de se ler uma boa enciclopédia, mesmo em tempos digitalizados.
O poder folhear, adiantar e retroceder nos livros, além da necessária parada para as reflexões.
Mauro concordo com você é um prazer folear um livro, é divinamente delicioso. Mas o que fazer se os Milicianos estão no poder queimando livros: Paulo Coelho, Paulo Freire, Chico Buarque?
Brincar de caça palavras num torebão do Aurélio é muito divertido…
… mata de dinheiros toda verde . Não seria … mata de pinheiros … ?