João Sabali*
Serial killer tímido sem nada na sacola
Beirando Teto
Na mesquita azul de Istanbul um ritual de Daime ocorre. Um homem se contorce, uma senhora treme, o tempo dá meia volta e corre. Um homem sem barba rasteja envolto em lençóis roxos, chorando e só de meias, ele parece ser daqueles tipos desesperados, daqueles tipos que tateiam no escuro e tropeçam no escuro e demoram a perceber ou a admitir que estão no escuro, quer dizer, ele não é exatamente uma exceção. Na mesquita azul de Istanbul o chão é um carpete vermelho escuro e macio e lá só se pisa de meias e há uma enorme fila do lado de fora da mesquita, todos ainda de sapatos porque afinal faz frio, e todos comentam da demora, mas só alguns soltam palavrões e esbravejam, na verdade ninguém solta palavrões e nem comenta, mas uns chegam a amaldiçoar o tamanho da fila em pensamento. Alguns gatos caminham entre os praticantes do Daime e dentro da pupila dos gatos é possível ver o horror com que contemplam a quantidade de demônios sendo expulsos, pois é isso o que mais acontece em um ritual desses. Os demônios recém-expulsos se olham entre si e coçam a cabeça na altura dos chifres e eles só podem ser vistos pelos gatos, que por sua vez só podem ser vistos pelos demônios, de modo que se você for um gato ou um demônio e calhar de estar a passeio ou mesmo a trabalho em Istanbul, vale a pena passar na mesquita azul da cidade e enfrentar a fila, a chuva e o frio para ver demônios brilhantes fazendo cafuné na cabeça fofa de gatos falsamente serenos enquanto se ouve um sussurro em russo romper o silêncio que, sem que ninguém percebesse, havia tomado conta do lado de dentro da mesquita azul de Istanbul.
3 Comentários
“o tempo da meia volta e corre”; em uma mesquita; azul, em Istambul; a concisão que contém uma biblioteca. Fantástico.
que beleza de conto. Eu não conhecia o autor João. Que venha mais e mais
Muito bem, nota cem, Saballi…