Por
Entrevista publicada originalmente em https://www.publico.pt/
Passaportes de imunidade, máscaras alternativas, abrandamento da covid-19 no Verão, foram alguns dos temas discutidos com a virologista da Universidade de Yale. Ela, porém, não usa nenhuma proteção facial, porque simplesmente não vai a lado nenhum
Iwasaki, investigadora da Universidade de Yale, onde ensina imunologia na Faculdade de Medicina, foi um dos oradores esta segunda-feira, entre outros especialistas de estratégias públicas, da saúde à economia passando pela política, como Stewart Cole, diretor do Instituto Pasteur, e que foi encerrada por Durão Barroso, antigo presidente da Comissão Europeia.
Há 15 dias, num artigo sobre a sazonalidade das doenças respiratórias publicado na revista Annual Review of Virology, uma equipe liderada pela investigadora japonesa procurou demonstrar a importância da relação entre a temperatura e a umidade do ar na transmissão por via aérea de doenças como a gripe, o que poderá ser relevante também para a covid-19. Iwasaki mostra que há um “ponto de equilíbrio” na umidade relativa do ar, entre 40% e 60%, que dificulta a transmissão do vírus através de partículas suspensas no ar nos ratinhos em laboratório.
Quanto aos “passaportes de imunidade”, como Akiko Iwasaki lhes chamou na conferência — que o governo português quer implementar para permitir pensar o regresso à normalidade —, a virologista alerta para os riscos: “Podemos medir os anticorpos, mas isso não significa que a pessoa esteja protegida.”
Já sabemos se os doentes que recuperam têm imunidade? Há alguns dados científicos que nos permitam pensar que isso acontece?
As pessoas que foram infectadas e recuperam desenvolvem, de fato, uma resposta imunitária. A prova disso é que se medirmos os níveis de anticorpos no sangue a maioria tem anticorpos elevados para o coronavírus. Também podemos medir o sangue das pessoas suspeitas de terem tido covid-19 e que recuperaram. Leva cerca de 14 dias a desenvolver uma boa resposta de anticorpos e é melhor esperar esse período para começar a medi-los.
Durante quanto tempo é que estes níveis de anticorpos estão presentes? Semanas, meses, isso será tempo suficiente para criar uma imunidade de grupo natural na comunidade?
Não temos provas ainda, porque o vírus é tão novo. Mas diria que confiar apenas nessa imunidade de grupo não é uma abordagem muito boa, porque há pessoas que são muito mais vulneráveis, como as que têm doenças prévias ou a população mais velha.
Sabemos se as pessoas têm imunidade três meses depois?
Não sabemos. Podemos medir os anticorpos, mas isso não significa que a pessoa esteja protegida.
A reinfecção é, então, possível?
A reinfecção foi observada em alguns casos. Mas neste momento é difícil saber se era verdadeiramente uma reinfecção ou alguém que tinha um pequeno reservatório de vírus algures que se tornou ativo outra vez. Não temos atualmente provas muito fortes de que a reinfecção esteja mesmo a acontecer.
Mas se a reinfecção for possível então a imunidade de grupo não é nem uma opção para acabar com a pandemia?
Seria ótimo ter uma vacina, é muito melhor do que confiar na imunidade de grupo. De fato, ainda não sabemos se a pessoa recuperada é completamente imune ao vírus. Espera-se que a vacina possa induzir uma imunidade muito melhor do que a infecção natural.
Do ponto de vista de uma virologista, como é que o SARS CoV-1 e o SARS CoV-2 são diferentes?
O vírus SARS de 2003 também era muito infeccioso e, na verdade, mais letal do que este. Mas foram capazes de o conter com medidas de saúde pública muito fortes, enquanto em relação a este vírus já é demasiado tarde para o conter, só podemos mitigar os seus efeitos.
Neste momento, o SARS CoV-2 está por todo o lado. Este vírus também tem um período de incubação muito longo: as pessoas não se sentem ainda doentes, mas são um ponto ativo [de contaminação]e podem transmiti-lo. Essa é a razão por que este vírus é tão difícil de conter, porque não sabemos quem está infectado até passarem alguns dias.
Os casos assintomáticos são muito infecciosos? Têm uma carga viral diferente dos das pessoas doentes?
Ainda não é muito claro porque ainda não testámos muitas pessoas assintomáticas para conhecer a sua carga viral. Mas se compararmos os casos leves da covid-19 com os casos mais graves parece haver uma pequena diferença na carga viral.
A diferença da carga viral é importante para o desenvolvimento da doença?
Especula-se que quanto mais vírus temos mais provável é termos sintomas, mas se olharmos para as pessoas que estão muito doentes a carga viral só por si não é capaz de prever se a pessoa vai ficar muito doente ou não. Penso que o que conta nesta doença é sobretudo a resposta imunitária do hospedeiro ao vírus.
Podemos esperar que o vírus desacelere no verão?
Não sei. Se olharmos para outros vírus como o da gripe, ele espalha-se muito mais devagar durante o verão. Espero que o vírus aéreo diminua, mas ainda temos outras formas de infecção: o contacto direto ou tocarmos em superfícies contaminadas.
Quão fortes são as provas de que o vírus se transmite através dos aerossóis, as partículas finíssimas em suspensão no ar?
Não percebo porque é que as pessoas acham que este vírus não é transmitido pela via aerossol. A maioria dos vírus respiratórios torna-se aerossolizado. Há um estudo feito no Nebrasca em que os investigadores mediram o ARN viral [material genético]nas salas com doentes e nos corredores exteriores do ar e detectaram ARN viral nos dois sítios indicando que havia ARN viral no ar.
A umidade do ar é muito importante para retardar a transmissão?
Uma umidade muito baixa, diria 20%, é a condição para que o vírus se possa estabilizar no ar. Já com uma umidade acima dos 50% o vírus fica instável. No que diz respeito ao fluxo do vírus no ar, a umidade é muito importante.
Pensa que poderemos ter um segundo surto no próximo inverno?
Penso que sim. Se não tivermos nenhuma vacina ou tratamento pode haver um novo surto deste vírus no inverno. Sem umidade [nos ambientes climatizados], sem vacina, é muito provável que o vírus regresse no inverno. Nós podemos mesmo ter um nível alto de infecção durante todo o ano, mas no inverno pode ser pior.
Quanto é que este surto vai durar? Um ano, dois?
Pode durar muito tempo, porque nós não temos nenhuma imunidade pré-existente. A não ser que haja suficientes pessoas vacinadas e que tenham recuperado e sejam resistentes ao vírus, este vírus não há de desaparecer.
As crianças estão a reagir melhor à covid-19: é por causa de não terem tido qualquer contacto com algum coronavírus anterior ou porque o seu sistema imunitário é mais plástico?
É nitidamente a última situação, porque toda a gente está exposto ao coronavírus da vulgar constipação, mesmo as crianças, mas há muito pouca reacção cruzada entre esse coronavírus e o SARS CoV-2.
Como é que está a correr o desenvolvimento da vacina?
Os testes clínicos já começaram para algumas candidatas a vacina. Mas vai levar pelo menos um ano ou dois para ter a certeza de que a vacina funciona e se é segura.
Quais são na sua opinião as principais questões imunológicas no desenvolvimento da vacina?
A questão mais importante é se a vacina consegue induzir anticorpos protetores, porque eles podem tanto proteger-nos como prejudicarem-nos se forem o tipo errado de anticorpos.
Há perguntas muito importantes por responder sobre este vírus e a doença que provoca: criaram em Yale uma task-force de investigadores à volta da covid-19, mas se pudesse liderar uma espécie de Projecto Manhattan, como o que houve na II Guerra Mundial à volta da bomba atómica, quais é que seriam as suas prioridades na investigação do SARS CoV-2?
Seria o que acabei de dizer sobre os anticorpos. Eu investiria muito dinheiro a tentar perceber que tipo de anticorpos é que nos protege contra o vírus. Porque se conseguirmos identificar um anticorpo protetor podemos acabar com esta pandemia.
Vê esse tipo de colaboração entre instituições e países neste momento?
Vejo uma ótima colaboração entre muitos cientistas que estão a tentar perceber melhor a doença. As plataformas em que isso se nota são as redes sociais: eu comunico o que penso sobre o vírus no Twitter, tentando que haja um melhor conhecimento e entendimento do vírus. Por isso, diria que é um processo já muito colaborativo.
Qual é que pode ser a importância dos antivirais se não tivermos a vacina? Acha que vão chegar primeiro do que a vacina na luta contra a doença?
Espero que sim. Se os antivirais conseguirem chegar antes da vacina podemos levantar um pouco as medidas de distanciamento social.
Quão mortal será o SARS CoV-2? Porque é que alguns países têm taxas de mortalidade para a covid-19 mais altas do que outros?
Tem a ver com a distância social. Alguns países só as implementaram demasiado tarde. Isso inclui os Estados Unidos.
Assistimos a muitas mudanças de políticas de saúde pública, como as que mencionou nos Estados Unidos mas também no Reino Unido. Porque é que este vírus provoca tantas abordagens diferentes e tanta confusão?
Porque há muitas mensagens contraditórias. Os governos têm de liderar, tomar decisões rápidas e comunicar essas decisões às pessoas. Isso não está a acontecer em sítios como a América.
Mas não era suposto estarmos preparados para este tipo de situação?
Sem dúvida, mas não estamos.
Os virologistas e epidemiologistas já falavam desta possibilidade há muito tempo. O que é que aconteceu para se ter tornado tão difícil pôr as medidas como o distanciamento social a funcionar?
Alguns países como a China foram muito rápidos, colocando cidades de quarentena. Essa é a razão para a China ter tão poucos casos quando comparada com países como os Estados Unidos, onde em alguns locais ainda não foram implementadas medidas rigorosas. Isso está a levar a este crescimento exponencial.
O problema é que os virologistas e os epidemiologistas deviam influenciar mais os políticos, mas muitos não os ouvem.
Na sua opinião, então, o que é que devemos fazer?
Por agora o distanciamento social é a única forma de combater esta infecção. Temos de ter uma abordagem conjunta para desenvolver essa proteção — uma ordem para ficar em casa em todo o lado. Isso fará uma grande diferença. Mas em sítios como Nova Iorque já é demasiado tarde.
Tem uma ideia de quanto tempo vai durar? Eu sei que é uma pergunta de um milhão de dólares…
Sem uma vacina ou um antiviral, este vírus não vai desaparecer. Depende mesmo do tipo de medidas que pudermos desenvolver.
Voltando ao início, podemos esperar que algum tipo de teste de anticorpos permita a algumas pessoas circular primeiro?
Isso é colocado como hipótese em países como o Reino Unido [e Portugal]. Não tenho a certeza se um teste de pesquisa de anticorpos é suficiente para saber quem está protegido.
Ainda não conhecemos a resposta imunitária deste vírus. Não sabemos simplesmente se os anticorpos sozinhos vão ser capazes de nos proteger de uma reinfecção pelo vírus.
Usa uma máscara protectora?
Não, porque não vou a lado nenhum. Mas se fosse usava.
Se não usarmos as máscaras cirúrgicas, que são necessárias nos hospitais, que tipo de material, de tecido, é melhor?
De facto, as máscaras cirúrgicas são necessárias nos hospitais e os cidadãos normais não precisam desse tipo de protecção. Mas qualquer coisa que permita fazer múltiplas camadas de tecido é bom e melhor do que nada.
No destaque, a virologista Akiko Iwasaki, pesquisadora da Universidade de Yale (Foto: Robert Lisak)